RS reforça combate à escravidão
Foi lançado Comitê Estadual de Erradicação desse tipo de trabalho, caracterizado por jornada exaustiva e locomoção restrita
Na mesma semana em que a Câmara dos
Deputados aprovou em votação apertada a Proposta de Emenda à
Constituição (PEC) 438, que estipula o confisco de propriedades onde for
flagrado o trabalho escravo, o Rio Grande do Sul ganhou uma comissão
estadual de erradicação da prática. Há 10 anos em tramitação, a PEC é
considerada uma conquista nacional no combate à escravidão, assim como a
Lista Suja, onde são listadas durante dois anos as empresas condenadas
por praticarem a exploração do trabalho; a negativa de empréstimos
assegurada pelo Conselho Monetário Nacional aos condenados; os grupos
móveis de fiscalização; e o plano nacional de combate ao trabalho
escravo – do qual as comissões estaduais fazem parte.
O grupo
gaúcho – denominado Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo
(Coetra-RS) – é o décimo do Brasil, país tido como de referência
mundial no combate ao trabalho escravo, conforme o coordenador do
Projeto Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da Organização
Internacional do Trabalho, Luís Antônio Machado.
A aprovação da
PEC, no entanto, não é definitiva. Ela passará por uma comissão de cinco
deputados e cinco senadores antes de ir ao Senado, e a redação final
enfrentará pressões da Frente Parlamentar da Agricultura. O deputado
gaúcho Luiz Carlos Heinze é contra: “No RS temos um ritmo intensivo de
trabalho na época do plantio e colheita. São 30, 40, 50 dias que nossos
trabalhadores trabalham até 15 horas por dia. Precisamos definir o que é
jornada exaustiva ou degradante. Imagine milhares e milhares de
propriedades à mercê de um fiscal e sua interpretação. A agricultura tem
um calendário que precisa ser respeitado”, diz.
Como fiscal do
trabalho rural há 15 anos, a coordenadora do projeto Rural no RS, Inez
Rospide, esclarece: por lei, a jornada de trabalho é de até 44 horas
semanais, com no máximo 2 horas extras por dia. Um trabalho é degradante
quando o trabalhador não tem seus direitos essenciais respeitados.
Jornadas de 14 horas são proibidas. “Se há necessidade de mais trabalho,
é preciso mais vagas. Pode-se trabalhar a lavoura por 24 horas, mas com
gente contratada para cada turno com intervalo legal.” Inez lembra que o
acusado tem seu direito de defesa assegurado, e a definição de trabalho
escravo também foi estabelecida. “É quando se está sujeito a uma
jornada exaustiva de trabalho, à restrição de locomoção e a condições
degradantes. A tipificação está no artigo 149 do Código Penal.”
Alguns acham situação natural
A maioria dos resgatados no Rio Grande do Sul da escravidão são trabalhadores trazidos de Goiás ou São Paulo, mas há gaúchos que aceitam tais jornadas degradantes. “São pessoas muito simples. Algumas chegam a achar natural passar por isso em troca de um emprego. Vão ficando um mês, dois meses. Às vezes se libertam, mas acabam em outro trabalho semelhante”, comenta Inez Rospide, coordenadora da fiscalização do trabalho rural no Rio Grande do Sul.
Recolocação é um desafio
Para a fiscal Inez Rospide, o desafio é enfrentar a recolocação desses trabalhadores. “No resgate, garantimos o pagamento dos direitos trabalhistas, a passagem de volta pra casa e o encaminhamento de três meses de seguro-desemprego. No entanto, alguns voltam a ser encontrados em trabalho escravo”, diz. Em sua avaliação, mesmo assim, o Rio Grande do Sul é um dos estados com índices de escravidão mais raros, o oposto do Pará.
O trabalho escravo existe no Rio Grande do Sul e carrega características de um Brasil colonial escravocrata. Assim como em outros estados, aqui eles lidam com atividades primárias, como colheita de batata e feijão ou extração de pinus e acácia. Pelo Brasil, a Lista Suja também mostra escravos intimamente ligados a atividades rurais como criação de bovinos ou no cultivo de cana-de-açúcar.
“No interior do país não há grandes ofertas de emprego. Eles trabalham no que aparece. São amealhados pela figura do gato, a pessoa que vai buscar empregados na cidade. A forma de contratação é a mais diversa possível, mas eles acabam colocados em locais de difícil acesso e ficam dependentes do contratante para tudo. Uma coisa muito palpável nos resgates é constatar que eles dependem do chefe para sair dali”, conta Inez Rospide, coordenadora da fiscalização do trabalho rural no Rio Grande do Sul, pela Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Ministério do Trabalho.
De maio de 2005 até o final de 2011, o Estado resgatou 145 pessoas do trabalho escravo. Entre as histórias, casos de trabalhadores em extração de madeira para fabricação de dormentes, da extração de tanino das acácias, plantação de melancias, ou batatas, em cenários semelhantes.
São pessoas que dormem em acampamentos de lonas, usam a água de um córrego próximo, fazem as necessidades básicas no “matinho”. Grande maioria cumpre jornadas de trabalho de sol a sol. A comida fica numa sacolinha na árvore. Esses trabalhadores devem o que usam, não têm sábado nem domingo livres.
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Promover uma mudança de cultura por parte de trabalhadores e empregadores rurais é um dos grandes desafios no combate à escravidão. Segundo a fiscal Inez Rospide, muitos trabalhadores se sujeitam a tantas horas de serviço e tais condições porque foi assim com o pai dele, será assim com ele e pode ser com o filho. Eles precisam sobreviver, e o trabalho é a garantia. No Interior, trabalhar por dia é natural para muitos. E quem “dá” o trabalho já faz bastante, em tal concepção. “É importante que o trabalhador reconheça sua importância. Que o patrão necessita que sua produção seja cortada, semeada, trabalhada para ter lucros com isso, proporcionados pelo trabalho. O patrão precisa desenvolver o respeito ao trabalho do outro assim como respeita o seu. E pagar e garantir os direitos a esse contratado, assim como devemos fazer com as empregadas domésticas”, destaca. No RS, diferentemente de outros estados, o trabalho escravo vem sendo encontrado em médias propriedades. “Grandes empresas querem o certificado de que não se utilizam de trabalho escravo. No Estado, isso vem acontecendo de forma mais individual.”
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*segunda imagem baixada do site www.trabalhoescravo.org.br
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