
Fantástico Cascaes
Antigo morador da Ilha relata visões de mundo semelhantes às registradas em arte por Franklin Cascaes





Dias atrás, em volta de uma mesa de tampão de vidro na casa de seu Hercílio Marciano, de 90 anos, na Barra do Sambaqui, ainda persistia a dificuldade que Franklin Cascaes (1908-1983) sentia desde a década de 40 em administrar o fato de o sagrado, natural e tradicional não conseguirem coexistência com o novo e moderno urbano. Nesta sexta-feira, a morte de Cascaes completa 30 anos. O artista pesquisou e mergulhou em infindos elementos da cultura popular dos anos 40, 50, 60 e 70 em Florianópolis e os transformou em arte feita de escritos, desenhos e esculturas.
Franklin começou a se dedicar ao seu ofício, por volta de 1948. Sem diploma universitário, é encarado como folclorista, antropólogo ou pesquisador, mas conforme especialistas, é artista. Além das esculturas, ele deixou desenhos e centenas de anotações, cadernos e outros documentos. Na sua temática, religião, sociedade, folclore e meio ambiente. É ele quem fundamentou as pesquisas e obras sobre o imaginário dos nativos da região. A produção é abrigada para pesquisas no Museu da UFSC.
Cascaes foi, e ainda seria conterrâneo de seu Marciano, um dos senhores que resguardam na Ilha as lembranças de uma Florianópolis antiga e genuína, nascido nos anos 20, 12 anos depois do artista. Marciano conta de suas crenças em narrativas que tanto remetem às pesquisas de Franklin. Acompanhado de Renato, filho caçula de 45 anos e Célio, de 51, o segundo de oito filhos vivos, Marciano é repleto de saúde, fé e respeito pela natureza. Vive na Ponta do Sambaqui, norte da Ilha, com Renato, num trecho já de estrada de chão, onde não passa ônibus e ele planta seu aipim, cria galinhas e mantém a horta. Sente falta do mangue, do moinho, da mandioca, de algumas estrelas. Ama comer camarão frito com café e sua saúde é sua fé. Não está mais no terreno original, mas lembra pedaço a pedaço os primeiros tempos naquela terra de beira mar que, quando ele chegou, era toda viva.
Marciano lembra com gosto os tempos antigos, se resigna sobre as diferentes referências sociais, e aceita tudo acalentando saudade com agradecimento. Não seu filho Célio, poeta e contador de histórias por gosto e ainda não ofício. As águas nos olhos de Célio relatam: ele sente muita saudade. “Porque eu gosto desse lugar e vou vendo ele ser tratado desse jeito, é triste. Pra mim o passado é bom demais. Porque eu não consigo aceitar esse mundo novo, que ignora o que gente sente e sabe. Eu queria pegar meus conhecimentos e passar para meus filhos, mas eles não se interessam. Ver a lua se movendo, entender suas mudanças, ensinar sobre o mar, a terra, o que dá em cima da terra, o plantar e colher, qual a época de pegar que peixe, a hora de matar o peixe – que é quando amansa a maré, é só nessa hora”, relaciona o filho.

Cascaes tinha sentimento semelhante, conta o diretor do Museu da UFSC, Hermes José Graipel Junior. Nos tempos de industrialização e construções em ritmo veloz por toda parte, ele via o velho ser colocado fora para dar lugar ao novo sem encontrar paz. “Ele critica veementemente o poder do dinheiro, que vai passando por cima do homem, da Natureza, e da religiosidade. É um dos primeiros que grita pelos guarapuvus derrubados nas matas, a árvore da canoa de um pau só”, afirma.
Durante essas três décadas, a obra do artista recebeu um tratamento de altíssima qualidade técnica em termos de restauro e conservação pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), mas isso não basta, segundo o maior especialista na obra de Cascaes, Gelci José Coelho, o Peninha. “A obra recebeu um cuidado primoroso da universidade, mas parece que não adiantou. O sonho de Cascaes era que mais de 40 conjuntos de esculturas estivessem disponíveis para a população conhecer as manifestações culturais do legado açoriano. Que ela possa atender estudantes, servir ao lazer da cultura e que os turistas, através dela, saibam como nos vivemos, no que acreditamos. É uma obra que deve ficar exposta, que não se presta pra ficar guardada ou ser mostrada separadamente, com olhar meramente estético ou de pesquisa”, diz.
Temas: costumes, fé e bruxas com crítica social
Marciano conta uma história: há algumas décadas, quando a comunidade subia o morro da Barra do Sambaqui em reza e procissão, alguns viventes fizeram escárnio da fé. Um deles passou tão mal no caminho que foi levado para casa e no outro dia morreu. O morro foi então marcado por uma cruz. “Há de se respeitar o que é do sagrado”, ele diz. “Deus, a natureza, que é dele, vem e cobra. Tudo isso é uma coisa muito grande, né?. Nas minhas idéia, tem uma alienação pelo dinheiro. Quanto mais se tem, mais se quer. Deixa de fazer hospital, de fazer creche ou cuidar das pessoa por isso. Está tudo numa ilusão”, enfatiza.
Tal ideário religioso também é registrado por Cascaes, que se atém ao imaginário de que quando um homem duvida, ultrapassa ou esnoba a justiça divina, um castigo é esperado. Assim se dão histórias recheadas inclusive de crítica social, como “Eleição Bruxólica”, que conta das promessas dos homens da cidade em levar a Ponta das Canas vacas que dão |“coiaiada” e nata, mantega pura e queijo, galinha que coloca ovo estalado, cana que já nasce melado ou carroça de quatro rodas| e outros itens, em troca de votos. No enredo, Cascais relaciona os fatos com a eleição das bruxas, e vai contando que a bruxa chefe velha, quando deixa o cargo, vai “morrê sossegada mordendo dente de raio do arrependimento dos máli que fez pros seus vivente, lá de dentro dos fogos das Caldera dos inferno do demonho que foi o patrão dela”.
A superstição acompanha os dois. Marciano tem respeito, sem medo, é respeito, é por raio. Ele não fala a palavra, chama semente. “A semente cai lá assim, com essa forma”, recuperando uma imagem semelhante a uma enxada, que vem para cortar e quando cai na terra vira semente. “A gente não pode ficar andando pela casa, tomar banho, semente eu cuido” diz Marciano, que guarda outra regra: na casa dele, não se chama qualquer coisa com nome ruim. Não se diz. E se chove a mais, da seca a mais, o que acontece, é porque é da natureza, é porque precisa, não se maldiz o dia, ensina ele, que afirmou. “Minha saúde é minha fé. Aquele pai lá de cima, sabe? Esse mundo é dele, a gente não sabe nem como foi o princípio, isso nunca tem fim. O homem pode acabar, mas não a criação não tem fim”,
A religiosidade de Franklin e da época se refere também a uma questão contemporânea “A nova geração, dos netos de Marciano, por exemplo, vive através da teconologia, “nunca fomos tão sozinhos e nunca ficou tão fácil fazer contato com os outros. Filósofos avisaram: nos tiraram Deus e nos deram uma necessidade de consumo que não serve para nos suprir. A razão não foi suficiente para nos ajudar a nos entender como pessoas nem em relação ao mundo”, cita.
O fim da terra, o cheiro de esgoto
O cenário social descrito por Cascaes ainda encontra eco. Em suas análises sociais Cascaes evidencia seus estranhamentos sobre trabalho, terra e dinheito quando conta por palavras escolhidas a história de uma menina do Campeche que começa a trabalhar de vendedora de loja na cidade. Tão agradecido ficou o pai dela ao patrão que “deu” o emprego, que lhe deu um terreno de presente.
Seu Marciano era dono de uma faixa de terra de 65 metros de frente e 700 de fundos, de frente pro mar do Sambaqui. Mais de 60% das terras foram vendidas, inclusive o rancho e o engenho originais. O filho Renato faz questão de manter o pai vivendo num pátio onde Marciano cuida da horta e cria galinhas, porque é o que ele gosta de fazer. O vento norte traz cheiro de esgoto nas águas, e aquelas noites de escuridão no mar próximo estão repletas de luzes da cidade. “Me disseram que ia valer rios de dinheiro, mas não. E as coisas se vão. E eu só desejo o bom para meus vizinhos”, comenta.
A cultura genuína quer passar

Em algum dia de 1977, o músico Marcelo Muniz declarou ao jornal da universidade que faltavam fontes de pesquisa de cultura popular para se fazer música com elementos locais, e recebeu de um leitor a ordem de conhecer o Museu da Ufsc e o professor Franklin Cascaes.
De Cascaes ouvia dicas como “Para conhecer a cultura, tens que falar com as pessoas mais velhas. Faça várias visitas, porque o velho vai se lembrando de lembrar e as histórias vão ganhando elementos e sentidos”.
Muniz percebeu que era vizinho de Cascaes e ia até sua casa, onde recebia ensinamentos do artista e pescava referencias em sua obra. “Ele era solícito mas exato. Quando dava sua mensagem, pedia licença, que não tinha mais o que me dizer naquele dia e precisava trabalhar”. Conta que Cascaes trouxe o primeiro gravador para a Capital, para registrar os contos que ouvia, era um gravador de arame que ele carregava com sua combi e muitas vezes acompanhado da mulher. Muniz recebeu de presente do artista a música “Carro de Boi”, a única canção de Cascaes gravada.
O valor do conhecimento Mané é referenciado por Muniz. “Um dia fomos fazer o boi de mamão numa escola no alto do Riberão da Ilha, eu era responsável musical e queria saber a cantoria dali, porque ela muda de comunidade pra comunidade, inclusive a batida. O único que sabia, e sabia tudo, era o zelador do colégio, que passou a ser muito mais respeitado pelas professoras e a diretora. “Hoje existe mais valor a isso, vários grupos e professoras procuram materiais para ensinar nas escolas”, afirma.
Nascido em Lages e morador da Ilha desde os 10 anos, Muniz presenciou a invasão cultural urbana e norte americana, e a auto-estima dos nativos perante sua própria cultura ser abalada. “As pessoas querendo saber de shopping, praia e blues, mas e nossos valores genuínos, pergunta ele, lembrando inquietação antiga. Pouco depois de conhecer Cascaes, Muniz forma o grupo Engenho em 1979 e decide ele mesmo continuar pesquisas sobre canções, costumes, memória local.
“Nossa cultura é muito rica pela mistura entre negros, índios e açorianos. Muitas mulheres tinham suas entidades representadas pela natureza, chamadas bruxas vieram fugidas da inquisição, perseguidas até por maridos. Fugiram para a Ilha em navios cargueiros para não ter o nome registrado na viagem e aqui se identificaram com a Fé dos índios e dos negros, que também tem seus deuses nas forças da natureza”, lembra.
Franklin, a sua obra

Depois de retratar a via sacra em esculturas da areia perto dos 20 anos, Franklin é convidado por Cid da Rocha Amaral, diretor da Escola de Aprendizes e Artífices de Santa Catarina, a iniciar seus estudos, e em 1941 ele se torna professor da antiga Escola Industrial de Florianópolis. Aos 38 anos, motivado pelo Primeiro Congresso Catarinense de História de 1948, com a meta de destacar a contribuição açoriana para a construção da identidade cultural catarinense, ele se empenha em conhecer a cultura local e trabalha artisticamente a partir dela. “Mesmo assim, seu dizer que é um estudioso da cultura açoriana é reduzir demais as informações que ele trazia. O Boitatá tem origem indígena, assim como . O pirão com caldo de peixe é indígena. Mandioca é plantada por índios. O negros são plenamente retratados na pesca da baleia. A sociedade não era açoriana”, relata Graipel. O próprio artista acreditava que os personagens das lendas populares eram herança dos índios carijós, além do Boitatá.
Cascaes foi convidado a integrar a equipe do Museu da UFSC para formar ali o núcleo cultura popular, além dos de antropologia e da arqueologia, já existentes. Foi aposentado contra sua vontade, em 1970, depois de a mulher e companheira de pesquisas, morreu. O desenho que fazia quando recebeu em sua casa o comunicado de aposentadoria, essa “palavra horrível e desprezível, vazia e sem sentido algum”, chamou “Quadro da Saudade, n 31”, e mostra uma zorra, tipo de carroça, subindo morros virgens de mata e pedra. 31 era o número de sua casa onde viveu as últimas décadas de vida.
Hoje sua obra está no Museu da UFSC. Nos últimos 20 anos, conta Graipel, ela passou por trabalhos de conservação e restauro, e hoje está em boas condições, com uma recém contratada restauradora a postos. O desejo do artista era que sua obra fosse trabalhada através de um centro de arte, com oficinas e apresentações que aliassem a escrita, artes plásticas, danças e teatro. “Hoje sua obra ganha essencial importância pela vasta fonte de pesquisa para estudiosos de diversas áreas sobre a época entre os anos 40 e 70 na Ilha”, diz Graipel. Outras formas de a tratar estão a surgir, segundo ele.
Cascaes com outras perspectivas
Responsável por duas grandes exposições sobre Franklin Cascaes, “Lado A”, com desenhos mais conhecidos e esculturas, e “Lado B”, que mostrava aspectos em segundo plano, como o avesso das obras, o artista Fernando Lindote encara a obra de Franklin com olhar de quem acredita que os feitos de um artista responde a algumas coisas que ele, no momento, nem se deu conta.
Lindote busca o ambíguo e ambivalente no trabalho de Cascaes. “Por exemplo, ele relata procissões, faz representações do inferno e mundo profano mas não consegue representar o céu. No máximo, aparecem duas ou três imagens de cruz com Jesus na obra, mas ele não chega ao céu”, aponta.
Politicamente, Cascaes ironiza Janio Quadros mas dá um tratamento recalcado e feroz às mulheres, explica Lindote. “A culpa católica define a mulher como responsável pelos pecados. Na obra de Cascaes, não há mulher bonita, ele aponta. Elas estão sempre ligadas aos poderes do inferno e Lúcifer. Quando ele retrata o monstro que representa o perigo da expansão imobiliária, uma mulher próximo ao monstro aparece.“ A ambivalência o acompanha na realidade.
[matéria publicada em sábado e domingo, 16 e 17 de março de 2013 no Notícias do Dia. Fotografias de Rosane Lima. Reprodução de obras: boi-tatá e mula sem cabeça. Edição de Dariene Pasternak e bela editoração de Juliana Duclós]
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