
Quilombola Kalunga abre Casa de Memórias e desenvolve Turismo de Base Comunitária através de coletivo de mulheres
Marta Kalunga, quilombola Kalunga da cidade de Cavalcante, na Chapada dos Veadeiros, abriu o Hostel Kalunga, a Casa de Memória Mulher Kalunga, e agora cria um projeto de Turismo de Base Comunitária a partir de um coletivo de mulheres de seu território. A união pela comercialização de produtos, trocas de afetos, conhecimentos e distribuição de renda fortalece o desenvolvimento de um turismo baseado em memórias sagradas e ancestrais.
“Eu me sinto rica, de uma riqueza tão grande, assim, que é isso mesmo, me sinto muito rica mesmo, sabe?…”. A frase é de Marta Kalunga, nascida no Vão de Almas, uma das principais comunidades do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, o maior território de remanescentes quilombolas do Brasil, reconhecido em 2021 pela ONU como o primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do país. Esse sentimento de riqueza, que ela menciona com os olhos brilhando e um longo suspiro feliz, é resultado de seu próprio trabalho e criação: ela fundou Casa de Memória da Mulher Kalunga. Inicialmente a Casa foi criada para que as mulheres Kalungas tivessem um apoio em Cavalcante, a cidade que compreende a maior parte do Território e a de mais fácil acesso para elas. “A necessidade inicial que percebi era poder facilitar uma fonte de renda para elas. Porque elas saem lá das comunidades (distantes de 27 até 70Km) para a cidade sempre para resolver alguma coisa, buscar atendimento de saúde, e trazem seus produtos para vender. Mas sempre deixam lá pai, filho, sempre tem alguém para cuidar, e elas tem o tempo de voltar. Assim, acabam vendendo seu trabalho a preço de banana, porque já trouxeram e precisam de renda e de voltar pra casa”.
Assim, Marta, que já havia transformado sua casa no Hostel Kalunga em 2018, decidiu sediar também o novo projeto. “Primeiro duas mulheres, Dirani e a Irene, aceitaram deixar os produtos aqui, assim que começou. Aí a gente fez a lojinha na cozinha, até hoje ainda é na cozinha. Elas traziam no início do mês e quando voltavam recebiam o dinheiro do que elas tinham vendido” Nesse processo, o movimento de visitantes no Hostel auxiliava nas vendas. “Coloquei a lojinha na cozinha porque ela é compartilhada, aí as pessoas notavam os produtos e já perguntavam o que era. Farinha de tapioca, de mandioca, gergelim, baunilha, óleos, sabonetes, cachaças, doces, licores, sabonetes, novelos de fios de algodão fiado, arroz, um bocado de coisa né. Aí vou explicando cada um e eles vão levando pra casa deles”.
Atualmente são 32 mulheres que entregam seus produtos para Marta. Há dois anos, ela decidiu fortalecer o movimento e nomear o encontro de tantos saberes. “Escolhi o nome acrescentando “memória” em nome dos que já foram né. Igual minha tia-vó, que foi a parteira de meu nascimento, que a imagem dela está ali pintada no mural de casa, que muitos já aprenderam tanto com ela como aprenderam com outros que já não estão mais aqui”.
Hoje o projeto só se amplia. A Casa já recebeu oficina de bordado, absorvente, macramê e outras formas de artesanato para as mulheres. Recentemente recebeu a doação de máquinas de costura para elas mesmas utilizar, e agora as mulheres Kalungas vão oferecer suas oficinas também. Para 2023 estão previstos mais eventos, apresentação de danças e mais oficinas “de tudo que a mulher sabe fazer”. Como elas moram distante da cidade e distantes umas das outras, a Casa é o lugar de encontro, afetos e trocas. Historicamente, o turismo em Cavalcante — e na Chapada dos Veadeiros – se desenvolve a partir da visita às suas cachoeiras extraordinárias, entre elas, a mais conhecida, a Santa Bárbara, na comunidade do Engenho Il.
O projeto de Marta vai além: ela quer desenvolver um turismo de base comunitária coletivo entre mulheres. Em parceria com a Universidade de Brasília (UNB), está aprendendo a criar rotas, estruturar serviços e fazer a divulgação. “Vamos abrir um pacote no qual as pessoas chegam aqui e podem fazer um passeio, por exemplo, para o Vão de Almas”. Nele, ela prevê que o visitante chega, se hospeda no Hostel e no dia seguinte são levados até a comunidade — em transporte dirigido por mulher. Passam pelo Museu da dona Lió, na comunidade da Ema, (a tia-vó parteira de Marta) e seguem para o Vão de Almas. Lá, o almoço é uma casa, como da Dirani, a janta na lrene, pode dormir na Neuza… “queremos fazer essa circulação para eles conhecer mais pessoas e lugares e para que o valor financeiro seja distribuído entre todas”.
Para a época dos festejos, como por exemplo a folia de Nossa Senhora da Abadia, que dura uma semana com rezas, celebrações tradicionais, danças e forró, ela já prevê montar uma estrutura de barracas equipadas e todo cuidado que possa ter com o visitante no local sagrado. No próximo festejo, em setembro, ele já vai acontecer “nessa ocasião também, vamos tomar café num lugar, almoço em outro, janta em outro, fazemos passeios pelo Paranã, recebemos benzimentos, visitamos o Museu laiá Procópia…”. Só para ilustrar, Dona Procópia dos Santos Rosa foi indicada ao prêmio Nobel da Paz em 2005 e em 2021 recebeu o título de Dra. Honoris Causa pela Universidade Estadual de Goiás.
Para ela, esse tipo de troca só resulta em ótimas experiências tanto para o visitante como para a comunidade. “Esses dias chegou uma pessoa de fora, gringa, que não falava nada de português e eu nada de inglês. Baixamos o tradutor no celular e falei que estava para o Vão de Almas, ela ia ficar só dois dias aqui na cidade. Ela foi junto e foi tão bom, tão bom compartilhar a alegria dela de estar lá e a alegria das pessoas em receber. Isso é gratificante, é nosso valor” “E é isso né. Estamos só começando, mas eu acredito que a gente vai longe. E somos ‘só’ mulheres né?”, finaliza, com um riso maroto de quem sabe a força que tem.
O maior território quilombola do país possui 272 mil hectares, com cerca de 10 mil pessoas que vivem em 39 povoados autônomos. Como TICCA pela ONU, guarda um título internacional concedido a regiões que mantêm a conservação da natureza e asseguram o bem-estar de seu povo. “Essa memória vive nessas coisas todas que a gente produz e vive até hoje, e eu queria muito juntar as mulheres, que já estavam separando uma das outras e a gente precisa estar unidas, então que seja pelas nossas memórias”.
*matéria publicada na edição digital da revista Abeta Summitt 2022, publicação Abeta edição Broto de Letra.


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