literatura

Manuelzão e Miguilim frases de Guimarães Rosa

Para o recreio, algumas passagens dessa graça que é o livro “Manuelzão e Miguilim”, início do Corpo de Baile, obra de João Guimarães Rosa, depois editada em trilogia. Os outros dois são “No Urubaquaquá, no Pinhém” e “Noites do Sertão”.

(…) Mas agora Miguilim queria merecer paz dos passados, se rir seco sem razão. Ele bebia um golinho de velhice.

(…) Dito formava a resposta: “O ruim tem raiva do bom e do ruim. O bom tem pena do ruim e do bom… Assim está certo.” “E os outros, Dito, a gente mesmo?” O Dito não sabia. “Só se quem é bronco carece de ter raiva de quem não é bronco; eles acham que é moleza, não gostam… Eles têm medo que aquilo pegue e amoleça neles mesmos com bondades…” “E a gente, Dito? A gente?” ― “A gente cresce, uai. O mole judiado vai ficando forte, mas muito mais forte! Trastempo, o bruto vai ficando mole, mole..

Ao lado: Cenas de Mutum, filme de Sandra Kogut

Uma estória de amor. Festa de Manuelzão.

     (…) Dava alegria a gente ver o regato botar espuma e oferecer suas claras friagens, e a gente pensar no que era o valor daquilo. Um riachinho xexe, puro, ensombrado, determinado no fino, com rogojeio e suazinha algazarra – ah, esse não se economizava: de primeira, a água pra se beber. Então, deduziram de fazer a Casa ali, traçando de se ajustar com a beira dele, num encosto fácil, com piso de lajes, a porta-da-cozinha, a bom de tudo que se carecia. Porém, estrito no cabo de um ano de lá se estar, e quando menos esperassem, o riachinho cessou.

Foi no meio duma noite, indo para a madrugada, todos estavam dormindo. Mas cada um sentiu, de repente, no coração, o estalo do silenciozinho que ele fez, a pontuda falta da toada, do barulhinho. Acordaram, se falaram. Até as crianças. Até os cachorros latiram. Aí, todos se levantaram, caçaram o quintal, saíram com luz, para espiar o que não havia. Foram pela porta-da-cozinha. Manuelzão adiante, os cachorros sempre latindo. 

– “Ele perdeu o chio…” Triste duma certeza: cada vez mais fundo, mais longe nos silêncios, ele tinha ido s’embora, o riachinho de todos. Chegado na beirada, Manuelzão entrou, ainda molhou os pés no fresco lameal. Manuelzão, segurando a tocha de cera de carnaúba, o peito batendo com um estranhado diferente, ele se debruçou e esclareceu. Ainda viu o derradeiro fiapo d’água escorrer, estilar, cair degrau de altura de palmo a derradeira gota, o bilbo. E o que a tocha na mão de Manuelzão mais alumiou: que todos tremiam mágoa nos olhos.

Ainda esperaram ali, sem sensatez; por fim se avistou no céu a estrela-d’alva. O riacho soluço se estancara, sem resto, e talvez para sempre. Secara-se a lagrimal, sua boquinha serrana. Era como se um menino sozinho tivesse morrido. (…).
    …………………..
Acima: Retrato de Manuel Nardi, inspirador de Manuelzão, Andrequicé, MG, 1963-1967. Foto Maurren Bisilliat

Ao lado: Capa do livro com edição da Nova Fronteira