direitos humanos

Cresce uso de remédios

Psicólogos dizem “não à medicalização da vida”
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A crescente aplicação de remédios psicoativos em crianças e adolescentes brasileiros, especialmente o metilfenidato, a famosa ritalina, vem sendo debatida e enfrentada há poucos anos no Brasil, mas já causa muita polêmica inclusive com discursos em defesa de direitos humanos e da infância.
Em julho o Conselho Federal de Psicologia lançou a campanha “Não à Medicalização da Vida”, na Câmara Federal dos Deputados. Como resposta, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (Abda) lançaram um manifesto criticando os pronunciamentos.

Segundo dados do Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos, no
Brasil, a venda de metilfenidato passou de 70 mil caixas em 2000 para
dois milhões de caixas em 2010. O país se torna o segundo maior
consumidor mundial dessa droga, perdendo apenas para os Estados Unidos.

Conforme
questionário do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade,
respondido por 257 municípios paulistas, em 2005, foram comprados 54 mil
comprimidos de metilfenidato e dispensados 43 mil nessas cidades. Em
2010 a projeção de distribuição foi de 1,1 mil. Em cinco anos, mais de 3
milhões de comprimidos da droga foram dispensados pelo sistema público
de saúde.

“Estamos danificando a saúde mental e física
dessas crianças que logo serão os adultos da sociedade. A doença fica
como rótulo. Aquela criança é doente, não é capaz. Não se comporta de
acordo, é uma coitadinha. Uma coitadinha que não será capaz”, alerta  Rosa Veronese,do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. Conforme ela,  o tratamento de distúrbios de comportamento, diagnosticados por médicos, baseado no uso de drogas psicoativas, é cada vez mais comum. “Crianças que tem dificuldade de concentração, de leitura, se mostram agressivas, agitadas ou dispersas são encaminhadas para o médico”, diz.

Conforme a psicóloga, as professoras preferem que aquele aluno esteja medicado, para que ao menos ele se comporte na sala de aula, assim como os pais que não sabem como lidar com o filho preferem que ele esteja medicado. “O mais usado é a ritalina, que promete aumentar a concentração. Seu uso cresce nas séries iniciais, já que a criança deve estar alfabetizada nos primeiros anos”, conta.

A conselheira do Conselho Federal de Psicologia, Marilene Proença, explica que a ritalina é um medicamento de tarja preta que atua sobre o sistema nervoso central. Uma anfetamina que pode causar reações como boca seca, nauseas, dor de cabeça, perda de apetite e alguns casos taquicardia. “Outro efeito é o zumbi. O remédio promove um excesso de dopamina nas sinapses, o que propicia uma sensação de prazer em grande escala. A pessoa fica contida em si mesma, quer se movimentar mas o remédio não deixa, e ela consegue se concentrar em apenas uma coisa de cada vez”, conta. Para a conselheira, essa concentração não garante aprendizado até porque conhecimento é criado com associações e sentidos. Ela cita os últimos resultados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica. As provas de português e matemática aplicadas em crianças da quarta série apontaram que praticamente a metade está no nível crítico ou muito crítico em relação à apropriação da leitura e escrita. “Temos que avaliar que escola oferecemos, e não focar o problema na saúde mental da criança” defende.

Psiquiatras dizem: “Famílias não reclamam”
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Após a campanha contra a medicalização, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (Abda) lançaram um manifesto criticando os posicionamentos do Conselho Federal de Psicologia. “Sou contrário. Não tem como generalizar. Essa campanha é um tiro do pé. A quem interessa que as crianças não sejam medicadas? As famílias não estão reclamando. Quem prescreve também não”, afirma Rudimar Riesgo, chefe da unidade de neuropediatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, professor de medicina da UFRGS e líder do Grupo de Pesquisa em Neuropediatria da UFRGS. Só em consultório ele conta mais de 8 mil pacientes.

No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, o número de avaliações neuropediátrica gira em torno de 16.000 pacientes anuais. Conforme o especialista, entre 30 e 35% das crianças são avaliadas como portadoras de transtornos de comportamento, tanto no consultório quanto no hospital. “Dois terços desses diagnósticos receberam medicação. Prescrevemos comprimidos quando existe prejuízo no relacionamento interpessoal ou escolar. Gostaria de saber o que um psicólogo faria quando uma mãe chega dizendo que a criança tem crises e bate a cabeça na parede, pedindo medicamento ou com crianças com crises epiléticas, o que ocorre 20 vezes mais entre os autistas”, questiona. Segundo Riesgo, cinco por centro das crianças de todo mundo, independente do continente ou condição social, são portadoras de transtornos de comportamento ou hiperatividade.

Sobre o excesso na prescrição do “remédio”, ele reconhece que “houve um período de exagero”, mas contextualiza: “Hoje há mais diagnósticos, as pessoas estão identificando os sintomas, além disso, as crianças vivem outra realidade. Recebem grande volume de informação pela internet e passam pouco tempo ao lado dos pais”, afirma. Ele avalia que a medicalização, além de ser essencial e inevitável em alguns casos, também visa facilitar o trabalho da terapia. “É possível que o tratamento demore mais sem o remédio. Muita gente procura o psiquiatra porque não tem como fazer duas sessões com psicólogo durante a semana. Nossas consultas são mais esparsas”.

O pronunciamento do presidente da ABP, Antônio Geraldo é contrário à campanha, “porque é um movimento de psicologização das pessoas. O CFP quer criar a necessidade de que todos sejam submetidos à psicoterapia. O diagnóstico de problemas psiquiátricos deve ser feito por médicos psiquiatras, não por psicólogos”, declarou.

Mãe busca atendimento para o filho.

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Mãe de três filhos, o mais velho com 12 anos, um menino de 7, e o caçula de 5 anos, Fabrícia Domingues recebeu o diagnóstico de hiperatividade do segundo filho quando ele estava com menos de dois anos. Até hoje a criança ingere um comprimido matinal e outro à noite do antipsicótico risperidona, bloqueador de dopamina, usado também contra esquizofrenia.

Sobrecarregada, Fabrícia busca apoio pedagógico para o filho desde novembro de 2011, quando recebeu a primeira recomendação médica para que ele disponha de atividade formal no turno inverso à escola. Até então ele passava o dia todo na creche, e agora tem a manhã livre. Fabrícia não encontra vaga. E ele, medicado mas sem atividade, não consegue acompanhar a turma.

Em uma das recomendações a psiquiatra que o atende explicita que o menino apresenta déficit cognitivo e necessita estimulação, receitando inclusive tratamento com fonoaudiólogo, e atesta: “sem condições de frequentar a primeira série”.

A criança está na lista de espera do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), de Porto Alegre. “Ele mexe no que não é para mexer. Abre os armários. A gente diz para ele não fazer algo e ele vai e faz” conta Fabrícia. Ela lembra de uma recente numa consulta médica: “Faltou o bico. Começou a se jogar no chão. No consultório chutava as coisas, a cadeira, se atirava de cima da maca”. O irmão mais velho relata: “Comigo ele é calmo. Mas quando não toma o remédio não quer dormir, só brincar”, diz.

A família mora no que originariamente seria uma garagem de uma casa de três pisos. Fabrícia faz faxina em casas e prédios e separa o lixo de três lixeiras coletivas para sustentar o aluguel de R$ 250,00 e mais despesas. Costuma sair de casa à tarde e volta às 19h. “Fico nas manhãs com eles, mas terça, quinta e sábados preciso limpar as lixeiras. Estou levando-os junto, mas já ameaçaram me denunciar”, conta.

[Fotografia de Mauro Schaefer]

* Segundo o Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos no Brasil, a venda de metilfenidato (ritalina) passou de 70 mil caixas em 2000 para 2 milhões de caixas em 2010. O país se torna o segundo maior consumidor mundial dessa droga, perdendo apenas para os Estados Unidos.
*Conforme questionário do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, respondido por 257 municípios paulistas, em 2005 foram comprados 54 mil comprimidos de ritalina e dispensados 43 mil.
*Em cinco anos, mais de 3 milhões comprimidos da droga foram dispensados pelos sistema público de saúde.
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Conselho de Psicologia dialoga com governo

A partir da campanha lançada, o CFP está em diálogos com o legislativo, executivo e sociedade, conforme Marilene. No legislativo, chama atenção para projetos de lei que criam programas de tratamento e diagnósticos de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade na área da educação. “O que é uma porta aberta para a medicalização”, julga a conselheira.
     Acompanha também uma proposta de projeto de lei da senadora Angela Portela, que quer determinar critérios para a utilização de psicofármacos em crianças e adolescentes, alterando um dos artigos do Estatuto da Criança e Adolescente. No executivo, o conselho está em agendas de audiência com o ministério da educação, da saúde e da secretaria de direitos humanos. Pelas regionais, a discussão é levada ao público.